sábado, 25 de julho de 2009

O DRAMA HUMILDE DE GUY DE MAUPASSANT

QUEM?
Henry René Albert Guy de Maupassant (1850/1893). Notabilíssimo escritor e poeta francês inclinado em suas histórias a criar ambientes psicológicos e também de crítica social lançando mão da interessante técnica de construção literária chamada naturalista. Foi amigo pessoal e discípulo de Gustave Flaubert. Além de romances e peças de teatro, Maupassant deixou 300 contos, todos obras de grande valor.
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COMENTÁRIO
Guy de Maupassant viveu pouco mas produziu muito. O próprio estilo literário conto está intimamente ligado a seu nome. Aos quarenta anos, dez apenas depois de ingressar na carreira literária estimulado pelo grande e notório Flaubert, é acometido de uma doença mental que em pouco tempo se agrava, e ele vem assim a falecer em 1893, aos 43 anos, em La Maison Blanche, famoso sanatório de Passy, depois de uma carreira brilhante e meteórica. Natural da Normandia, belíssima região da França, ele foi mais um notório escritor que - assim como Michel de Montaigne - nasceu e viveu em castelos, ou seja, nasceu em meio à privilegiada burguesia de sua época, o que nem sempre é grande vantagem para um escritor ou aspirante que abraça a profissão das letras. A vida fácil, sem muitas dificuldades para serem superadas, nem sempre é boa amiga da criação artística com as letras. Parece faltar-lhe o suor do pão por ganhar - como diz sabiamente Romain Rolland em Jean-Christophe - algo que enfraquece indubitavelmente a intensidade da arte que quer se exprimir através do artista. Mas, definitivamente, não era este o caso dele. Fato é que, este autor francês, Maupassant, teve grande êxito e ficou conhecido especialmente por seu estilo econômico e simples, que dispensa grandes acontecimentos ou pessoas, e que ainda assim vai ao âmago da vida humana e rouba-lhe o significado mais puro para escrever sua histórias; sempre numa prosa leve e marcada pela suavidade pouco atribulada.
Na passagem escolhida aqui, pinçada a dedo no belo conto Drama Humilde vemos o vulto horripilante e avassalador da morte arrasar com uma família, numa descrição curta e precisa do autor, que fala através da boca de uma velha desconhecida coadjuvante que o narrador encontra por acaso em uma de suas viagens, dentro do belíssimo conto Drama Humilde. Vale lembrar que, ao contrário de muitos autores famosos e reconhecidos, Maupassant prefere ser um proseador das pessoas e acontecimentos simples, singelos, humanos, sem artifícios e sem rebuscamento. Um grande autor que produziu em dez anos a obra inteira de uma vida. Muito bom!
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CITAÇÃO
"- Meu marido morreu. Depois foi a vez de meu pai, em seguida perdi minhas duas irmãs. Quando a morte entra numa casa, é como se quisesse ceifar o máximo para não precisar voltar tão cedo. Só deixa vivas uma ou duas pessoas para que chorem as outras." (pág59)
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LIVRO: Histórias Eternas // AUTOR: Guy de Maupassant // CONTO: Drama Humilde // EDITORA: Cultrix // São Paulo // 1959

quinta-feira, 23 de julho de 2009

A MORTE ATRAVÉS DAS LETRAS SICILIANAS DE LUIGI PIRANDELLO

QUEM?
Luigi Pirandello (1867/1936). Notório dramaturgo, poeta, escritor e romancista siciliano. Seus contos falam da Sicília, da província e refletem a alma bela de seu povo e de sua região. Autor do belíssimo livro Novelas para um Ano - O Velho Deus e do romance O Falecido Mattia Pascal. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1934.
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COMENTÁRIO
A morte fascina e sempre fascinará escritores de todas as gerações. Sim, porque sua eminência inexorável impõe temor mesmo nos menos apegados à vida. Além de que sua irreversibilidade e sua infalibilidade, há milênios comprovadas, provocam no sujeito que reflete sobre ela uma mística fascinação que, sem sombra de dúvida, estimula e dá asas à imaginação. Segundo Sigmund Freud, que se debruçou sobre o assunto como poucos, não podemos sequer conceber o mundo sem considerar a nossa própria existência; ou seja, não conseguimos nem pensar direito nela - na morte - devido ao nosso desmedido e inveterado antropocentrismo umbiguístico. Por estas e por muitas outras razões, a morte exerce atração magnética sobre a alma humana que, diante dela, sempre extremece. Na impossibilidade de compreendê-la plenamente - por razôes óbvias, pois estamos vivos - tratamos logo de dar-lhe cara e contornos quase sempre segundo nosso pobre e mortal imaginário, e fatalmente segundo nossa própria imagem e semelhança.
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Para muitos a morte é poder re-integrar à força plena e natural que um dia nos gerou. Eu concordo e acho também que, além disso, deve ser como um descanso longo, profundo e reconfortante, depois de uma vida atribulada e cheia de incertezas e apurrinhações. Aliás, dizem os entendidos que por lá não existe mais dor, nem paixão, nem remorso, nem nenhuma destas lamentáveis penas que nós comumente arrastamos de lá para cá e daqui para lá nesta vidinha besta e mortal. Todavia, como não há escolhas com relação à esta Nobre Dama que um dia virá nos buscar, tratemos antes de tudo de sermos felizes gozando os dias como se estes nos fossem caríssimos, e também os últimos antes de tão fatídico e mórbido encontro; e, por que não, escrevamos com sabedoria sobre ela! Missão imputável apenas às mentes mais privilegiadas capazes de abstrair suas próprias insignificâncias diante do infinito cósmico do universo.
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Na citaçãos escolhidas, vemos o admirável escritor e dramaturgo Luigi Pirandello numa belíssima reflexão sobre um defunto, passagem esta oriunda do conto Os pensionistas da memória, texto filosófico e meio fantástico, onde este autor nos leva a dar voltas com a idéia irrefutável da morte, e o embaraço que é para os vivos lidar com um cadáver; muito bom!
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Da Redação.
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CITAÇÕES
"Que sorte, a vossa! Acompanhar os mortos ao cemitério e depois voltar para casa, eventualmente com uma grande tristeza na alma e um grande vazio no coração, se o morto vos era querido; e se não, com a satisfação de ter cumprido um dever penoso e querendo dissipar, ao tornar às ocupações e ao corre-corre da vida, a consternação e o abatimento que a idéia e o espetáculo da morte sempre incutem. Todos, de qualquer forma, com uma sensação de alívio, pois mesmo para os parentes mais íntimos, o defunto - sejamos honestos - com aquela gélida e imóvel rigidez impassivelmente oposta a todos os cuidados que lhe prestamos, a todo pranto vertido ao seu redor, é um tremendo estorvo, de que a própria dor - por mais que dê sinais e ainda tente desesperadamente fazer-se pesar - gostaria, no fundo, de se liberar." (pág167)
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"Vamos, vamos! Sabeis, na verdade, por que chorais? Vós chorais por outra razão, meus caros, por uma razão de que não suspeitais nem de longe. Chorais porque o defunto, ele, não pode mais vos dar uma realidade. Dão-vos medo os seus olhos fechados, pois não podem mais ver-vos; aquelas suas mãos duras e gélidas, que não podem mais tocar-vos. Não encontrais paz por causa daquela sua absoluta insensibilidade. Portanto, exatamente poque ele, o defunto, não vos sente mais. O que significa que para vossa ilusão caiu, junto com ele, um apoio, um conforto: a reciprocidade da ilusão." (pág172)
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LIVRO: Dona Mimma - Novelas para um ano // AUTOR: Luigi Pirandello // EDITORA: Berlendis & Vertecchia Editores // São Paulo // 2002

PUSHKIN NUMA SENTENÇA

QUEM?
Alexandre Pushkin (1799/1837). Notável romancista e poeta russo. Considerado por muitos o maior dos poetas russos e o fundador da literatura moderna deste país. Foi pioneiro no uso da língua coloquial em seus poemas e peças, criando um estilo narrativo que mistura drama, romance e sátira. Como poeta, fazia uso de expressões e lendas populares, marcando os seus versos com a riqueza e diversidade do idioma russo. Influenciou autores como Gogol, Liermontov e Turgeniev.
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COMENTÁRIO
Nesta fantástica sentença filosófica, vemos a genialidade deste mestre russo da pena usando, com equilíbrio, elementos de humor e sagacidade. A citação escolhida veio do conto A Dama de Espadas onde ele, Pushkin, faz referência aos desmiolados e cabeças duras que existem no mundo de uma maneira geral. Sensacional!
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CITAÇÃO
"Duas idéias fixas não podem coexistir no mundo moral, assim como, no mundo físico, dois corpos não podem ocupar simultâneamente o mesmo lugar." (pág213)
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LIVRO: A Dama de Espadas // AUTOR: Pushkin // EDITORA: Livraria Martins // São Paulo // Sem data

COLOMBA DE MÉRIMÉE: UM ROMANCE FRANCÊS À MODA ANTIGA

QUEM?
Prosper Mérimée (1803-1870), brilhante dramaturgo, contista, historiador e arqueologista francês. Autor de Colomba e da imortal Carmen.
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COMENTÁRIO
Colomba de Prosper Mérimée é um romance à moda antiga com belas donzelas, homens nobre e corajosos, terras estranhas com costumes e hábitos exóticos, intrigas, vinganças, tiroteios, sangue, coincidências extravagantes; enfim, uma bela história nos moldes clássicos de se escrever romance de aventura. Este talentoso autor francês nos leva com habilidade para dentro deste mundo 'selvagem', por assim dizer, e acabamos irremediavelmente envolvidos na trama que ele nos propõe com sua prosa suave e elegante. Interessantíssimo, não só pela especificidade da cultura abordada, como também por sua narrativa ágil e instigante, típica destes romances de viagens e expedições; Colomba é para ler, entreter e relaxar o leitor que aprecia este tipo de texto menos profundo, ainda assim, criativo, estiloso e agradável. Nas citações escolhidas, vemos um pouco da alma desta gente brava e arredia da Córsega que levava seus códigos de honra a limites extremos, e que praticavam crimes e vinganças sangrentas como parte de seus cotidianos rudes e aguerridos.
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CITAÇÕES
Um pai deserperado lamenta a morte de dois filhos:
"Mas essa dor ruidosa causava menor impressão do que o silencioso desespero de um personagem que atraía todos os olhares: o desventurado pai que, indo de um cadáver a outro, levantava as cabeças sujas de terra, beijava os lábios violácios, soerguia os membros já hirtos, como para lhes evitar os solavancos da estrada. Às vezes, viam-no abrir a boca para falar; mas não soltava um grito, nem uma palavra." (pág146)
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Colomba, a personagem principal do romance, em ato de extrema bravura:
"Atiraram pedras às janelas da sala em que se achavam Colomba e seus hóspedes. Dois tiros foram disparados e, atravessando o paravento, as balas fizeram voar pedaços de madeira sobre a mesa, perto da qual estavam sentadas as duas mulheres. Miss Lídia gritou aterrorizada, o coronel agarrou sua carabina e Colomba, antes que a pudessem deter, atirou-se à porta da casa e escancarou-a de golpe. Aí, de pé sobre o limiar, as duas mãos estendidas na direção dos inimigos, esplendidamente resoluta, clamou:
- Covardes! Atiram sobre mulheres e estrangeiros! São corsos? São homens? Miseráveis que apenas sabem assassinar pela retaguarda! Avancem! Eu os desafio! Estou sozinha! Meu irmão está longe! Matem-me! Matem a meus hóspedes! Será digno de quem são!... Não ousam, covardes?! Sabem que nos vingaremos!... Vão, vão chorar como mulheres e agradeçam por não exigirmos mais sangue!" (pág147)
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LIVRO: Colomba // AUTOR: Prosper Márimée // EDITORA: Livraria Martins // São Paulo // Sem data

terça-feira, 21 de julho de 2009

ÚLTIMOS FRAGMENTOS SELECIONADOS DO JEAN-CHRISTOPHE DE ROMAIN ROLLAND

QUEM?
Romain Rolland (1866/1944). Talentoso novelista, biógrafo e músico francês. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1915. Sua sensível obra concilia o idealismo patriótico com um internacionalismo humanista, além de demonstrar profunda compreensão sobre a alma humana. Escreveu peças de teatro, biografias como a Vida de Beethoven e Mahatma Gandhi, e o espetacular romance Jean-Christophe. Em 1923, fundou a revista Europe. Romain Rolland fez uma importante observação sobre o livro O Futuro de uma Ilusão de Freud. Esta observação foi a premissa usada por Freud para escrever o seguinte livro: O Mal-estar na Civilização. Quando o filósofo político italiano Antonio Gramsci escreveu, na prisão, que o "pessimismo da inteligência" não deveria abalar o "otimismo da vontade", estava citando Romain Rolland.
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COMENTÁRIO
Em minha longa e rápida leitura de Jean-Christophe de Romain Rolland - quase mil e novescentas páginas em cinco volumes lidos em sessenta dias corridos entrecortados com outras pequenas leituras - pude me deter em diversas passagens notáveis e dignas de citação para ésta coluna de blogagens literárias. Deste modo, mesmo já tendo escrito e postado barbaridade sobre esta bela obra, e citado muitos trechos - afinal, foram sete posts comentados só sobre Jean-Christophe - concluo os trabalhos de resenha e seleção desta interessantíssima obra com o restante de trechos selecionados do quinto e derradeiro volume. Citações sobre assuntos diversos que, enquanto lia, ainda ficaram marcados para publicação. Jean-Christophe de Romain Rolland: é indicação especial deste Escriba digital pós-tudo.
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CITAÇÕES

Sobre a crítica:
"Ora! às vezes encontram-se entre esses dois ou três bons sujeitos, e quanto bem eles podem fazer! Isso de animais ruins existe em toda parte, não é coisa do ofício. Conheces algo pior que um artista sem bondade, vaidoso e azedo, para quem o mundo é uma presa, que se torna furioso por não poder mastigá-la? É preciso armar-se de paciência. Não há mal que não possa servir para algum bem. O pior crítico nos é útil; é um treinador; não nos permite flanar em caminho. Cada vez que julgamos ter alcançado a meta, a matilha nos morde as nádegas. Em marcha! Mais longe! Mais alto! Mais depressa ela cansará de me perseguir do que eu de caminhar adiante dela." (pág333/volV)
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Sobre os animais de estimação e seus donos:
"Os animais refletem o meio em que vivem. Sua fisionomia refina-se conforme os amos de sua intimidade. O gato de um imbecil não tem o mesmo olhar que o de um homem de espírito. Um animal doméstico pode tornar-se bom ou mau, franco ou sorrateiro, delicado ou estúpido, não somente segundo as lições que lhe dá o dono, mas também conforme o que este mesmo é." (pág 363/volV)
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O personagem principal, Jean-Christophe, em vias de sua morte, reflete brilhantemente sobre o sentido e a essência da música como expressão e arte:
"A arte é a sombra do homem projetada sobre a natureza. Que desapareçam juntos, sorvidos pelo sol! O imenso tesouro da natureza passa através de nossos dedos. A inteligência humana quer colher a água que corre nas malhas de uma rede. Nossa música é ilusão. A nossa escala de sons, as nossas gamas são invenções. Não correspondem a nenhum som existente. É uma convenção do espírito entre os sons reais, uma aplicação do sistema métrico ao infinito móbil. O espírito carecia dessa mentira para compreender o incompreensível; e, como queria nele acreditar, acabou acreditando. Mas isso não é verdade. Isso não tem vida. E a satisfação que proporciona ao espírito essa ordem criada por ele, só foi conseguida ao falsearmos a intuição direta do que existe. De tempos em tempos, em contato passageiro com a terra, um gênio entrevê bruscamente a torrente da realidade que está fora dos quadros da arte. Racham-se as represas. A natureza torna a entrar por uma frincha. Mas logo depois a brecha é tapada. Salvaguarda necessária à razão humana! Esta pereceria, caso seus olhos encontrassem o de Jeová." (pág377/volV)
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LIVRO: Jean-Christophe // AUTOR: Romain Rolland // EDITORA: Globo // São Paulo // 1941

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O BRILHANTE ANARQUISTA INDIVIDUALISTA LYSANDER SPOONER

QUEM?
Lysander Spooner (1808/1887). Notável anarquista, filósofo político norte-americano cujo trabalho era dedicado à luta contra as incontáveis contradições humanas, como a escravidão e o capitalismo. Humanista todo, lutou por atenuar as misérias humanas e as desigualdades de seu tempo. Autor do sensacional Vícios não são Crime.
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COMENTÁRIO
Lysander Spooner: eis que seu revolucionário clamor de cunho ético e questionador sobre os valores sociais e da indignidade humana nos chega até os dias de hoje, como um alento oriundo de um grande pensador dedicado às causas públicas e aos menos privilegiados. Ativista combativo do Pensamento Livre e anarquista individualista do início do Século XIX, foi extremamente aguerrido em sua luta contra os poderosos e opressores da vez. Muito de seu perspicaz discurso político se baseava na argumentação de ausência de constitucionalidade nas medidas do Estado relativas ao povo. Um humanista. Uma alma sensível buscando mais dignidade social. Um homem, com certeza, necessário à humanidade, e que deixa um legado escrito importante. Nessa passagem escolhida a dedo no belíssimo livro de Ensaios, nesta jóia da literatura rebelde, underground e maldita de todos os tempos, obra prima da contracultura norte-americana - Vícios não são Crime - vemos o mestre do pensamento e da pena esbanjar inteligência e estilo num texto épico, contundente e de extrema relevância para a coletividade; simplesmente sensacional!
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CITAÇÃO
"Todos chegamos ao mundo ignorando a nós próprios e a tudo o que nos rodeia. Por uma lei fundamental das nossas naturezas, todos nós somos constantemente impulsionados pelo desejo da felicidade e pelo medo da dor. Mas temos necessidade de aprender tudo acerca daquilo que nos pode dar felicidade e preservar da dor. Não há dois entre nós que sejam inteiramente idênticos, quer do ponto de vista físico, quer do mental ou emocional; nem, consequentemente, em nossas necessidades físicas, mentais ou emocionais, de obter felicidade e evitar seu oposto. Então, não há ninguém entre nós que possa aprender esta lição indispensável da felicidade e da infelicidade, virtude e do vício em lugar dos outros." (capítulo VI/pág14)
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LIVRO: Vícios não são Crime // AUTOR: Lysander Spooner // EDITORA: Aquariana // Coleção B // São Paulo // 2003

sábado, 11 de julho de 2009

JEAN-CHRISTOPHE 1785 PÁGINAS DEPOIS

QUEM?
Romain Rolland (1866/1944). Talentoso novelista, biógrafo e músico francês. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1915. Sua sensível obra concilia o idealismo patriótico com um internacionalismo humanista, além de demonstrar profunda compreensão sobre a alma humana. Escreveu peças de teatro, biografias como a Vida de Beethoven e Mahatma Gandhi, e o espetacular romance Jean-Christophe. Em 1923, fundou a revista Europe. Romain Rolland fez uma importante observação sobre o livro O Futuro de uma Ilusão de Freud. Esta observação foi a premissa usada por Freud para escrever o seguinte livro: O Mal-estar na Civilização. Quando o filósofo político italiano Antonio Gramsci escreveu, na prisão, que o "pessimismo da inteligência" não deveria abalar o "otimismo da vontade", estava citando Romain Rolland.
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ARTIGO
Romain Rolland foi de doer! Clássico e estiloso, profundo e eloquente, enfim, competente e fluido com a pena em punho, pegou-me nas primeiras dez páginas e daí não larguei mais o tal. Foram cinco tijolos de literatura fina, de prosa encadeada e elegante, onde este interessantíssimo autor francês esbanja toda a sua genialidade - sempre guiado e orientado por uma espécie de veracidade plena de si mesma, difícil de explicar - ele vai abstendo-se, com grande habilidade, de cometer excessos de qualquer natureza, e a história vai se impondo e nos cativando à medida que avança suave e sutilmente. Fato é que a obra flui que é uma beleza. Trata-se de uma linda novela! Repleta de emoção, é construída na fragilidade do ser humano, nos recontidos da alma sensível de um músico alemão, que sai pela vida à procura de sua significação, apaixonadamente. Vemos Jean-Christophe. Desde o seu nascimento até sua morte. Uma homem simples, de família de músicos, mas sem grandes posses, com uma alma rebelde e extremamente criativa que vai enfrentando um a um os obstáculos que a vida lhe impõe, sem nunca perder a sua nobreza interior, sua doçura e sensibilidade. O talento do autor em questão se sobressai ainda mais justamente por estas duas características marcantes que atesto aqui: não faz uso de falsos artifícios, de espécie alguma; e suas reflexões são profundas, intensas e notavelmente sensíveis. Eis que um ser humano notável cria uma obra igualmente notável. Que, além de todos os méritos já mencionados, é capaz de prender e cativar o leitor de uma maneira muito singular, transformando sua longa extensão num gozo aprazível e por isso prolongado. Da turma do Sigmund Freud e de outras figurinhas carimbadas de igual quilate, os grandes de seu tempo, Romain Rolland estava atento aos acontecimentos e fenômenos interiores do ser humano, do bicho homem, do Homo sapiens; e as pequenas coisas, os pequenos gestos, os hábitos simples, as paixões que revelam transparentemente o que se passa no interior das almas que habitam estes mesmos corpos - muitas vezes agônicos. Suas paixões e mazelas, suas flores e seus espinhos, seus heróis e seus fantasmas; algo assim, diria eu, com uma ponta de bom humor, bem parecido com a própria realidade. Aliás, Jean-Christophe bem que poderia ter existido. E talvez tenha mesmo, pelo menos na cabeça do talentoso autor resenhado aqui, pois muitas vezes um personagem é apenas uma colagem de muitas pessoas reais condensadas, desconexas, fragmentadas, não importa; o que interessa é que criamos afinidades com este singular alemão meio rústico que se propõe a cruzar a vida sem nunca se desviar de sua inclinação interior de lealdade e justiça, de humanidade e de talento, de sua música e de sua fé, e, especialmente, de sua maior virtude: a bondade. Com toda certeza um rebelde, um bom rebelde, de todo o modo útil à humanidade, talentoso e cheio de energia, à frente, muito à frente de seu tempo e de sua conservadora cultura germânica, um amante da natureza, enfim, um homem bom.
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No mais, este romance reflete um tempo de outrora, uma época passada, uma determinada cultura muito sofisticada e crítica, muito rica e muito profícua nas artes e na música de uma maneira geral, onde velhos valores eram postos toda a hora à prova - assim como Jean-Christophe faz sempre na história - de homens notáveis assim como ele, que tinham que confrontar estes limites e transpô-los, para o bom fluir desta tão bela arte que é a música erudita, e para o avançar saudável dos dias e dos homens de sua geração.
É claro que o romance Jean-Christophe é uma recomendação mais do que especial deste escriba velho, e que afirmo categoricamente que os que puderem ter a oportunidade ler a referida obra inteira - e tempo, que sem dúvida é necessário - com certeza, não se arrependerão de fazê-lo.
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Ademais, que a leitura seja sempre útil àquele que lê, trazendo, se possível, bons fluidos e bons algúrios para o mesmo. Para achar os referidos livros por um bom preço, convêm recorrer aos sebos. A minha edição, por exempolo, de capa dura e em ótimo estado, adquiri em São Paulo, no sebo de um amigo à Av. Brigadeiro, por um preço muito bom. Um terço do preço das livrarias. Axé!
Da Redação.
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LIVRO: Jean-Christophe // AUTOR: Romain Rolland // EDITORA: Globo // São Paulo // 1941

quinta-feira, 9 de julho de 2009

UMA GIGANTE DA PENA CHAMADA CLARICE LISPECTOR

QUEM?
Clarice Lispector, nascida Haia Lispector (1920/1977). Espetacular escritora brasileira natural da Ucrânia. Suas obras caracterizam-se pela exacerbação do momento interior e intensa ruptura com o enredo factual, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise. Seus escritos refletem sua alma sensível e questionadora, e seu estilo marcante influenciou toda uma geração de leitores e amantes da literatura.
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COMENTÁRIO
Ler Clarice Lispector foi uma porrada. Quando apanhei um livro seu num sebo de São Paulo e li pela primeira vez, foi de estarrecer. Não imaginava a potência de sua eminente prosa. Sofisticada e sensível, introspectiva de existencialista, seus livros revelam ampla capacidade de redação fluida, e uma magia típica dos grandes gênios. Filha da burguesia, esta escritora talentosíssima escreveu diversas obras interessantes, onde podemos notar toda a sua compreensão do Mundo, inclusive no qual estava irremediavelmente imersa, e é flagrante seu olhar autêntico e questionador imortalizado em seus belos escritos. Ler Clarice sempre é uma boa surpresa. Sim, porque esta nobre dama da nossa literatura era imprevisível em suas criações. Em suas histórias, além de competência criativa, podemos achar uma série de entidaees e fantasmas que assombram a alma humana. Na citação, vemos a autora falar consigo mesma e fazer referência a um inseto geralmente odiado, uma barata, coadjuvante da trama. Sensacional!
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CITAÇÃO
" - Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida. - e, através da barata que mesmo agora revejo, através dessa amostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança." (pág60)
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LIVRO: A Paixão Segundo G. H. // AUTORA: Clarice Lispector // EDITORA: Rocco // Rio de Janeiro // 1998

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A HISTÓRIA DE UM CAVALO SENSÍVEL ATRAVÉS DA PENA COMPETENTE DE LEÃO TOLSTÓI

QUEM?
Leão Tolstói (1828-1910) ou, simplesmente, Лев Николаевич Толстой - Eminente e brilhante escritor russo. Autor do clássico romance imortal Guerra e Paz. Fazendeiro, humanista, sensível, conhecedor da alma humana e dos animais, escreveu contos notáveis como O Diabo, História de um Cavalo e Padre Sérgio, este último tratando das tentações carnais de um padre diante de uma bela mulher. Reflexos de seu posicionamento vanguardista e já divergente da igreja católica ortodoxa de sua época.
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COMENTÁRIO
Kholstomér é um cavalo interessantíssimo mais humano que muito ser humano. Sensível, conta sua própria história de forma admirável, sob o bailar suave da pena competente deste mestre da literatura russa: Leão Tolstói. O conto em questão é de extrema delicadeza e acaba por nos mostrar de maneira inequívoca a alma dos animais e o quão inteligente e notáveis são estes seres. Infelizmente, estes são - de maneira geral - sacrificados, subjugados e mortos por nossas infindáveis crueldades humanas. Nós, seres ditos racionais, elevados e superiores. Uma lástima brutal. Envoltos em nossa razão pseudo avantajada, vamos explorando as demais espécies, como se só a nós fosse dado o direito de sobreviver em paz neste mundo. Maltratando e destruindo as demais criaturas vivas, interferimos numa delicada e singela harmonia natural, e deste modo, sem conhecimento e consciência, vamos cavando nossa própria sepultura ao extingui-los. Já é mais do que hora de acordarmos para estas barbaridades, e assim tratarmos com - no mínimo - mais respeito, estes inocentes e belos seres vivos - que, mesmo que não saibamos - são nossos irmãos naturais dentro desta infinidade de manifestações diferentes que a vida achou para se aparelhar nesta singular dimensão. Assim, sejamos mais justos e menos prepotentes com nossos companheiros animais. É imperativo. A própria razão o dita!
Da Redação.
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CITAÇÃO
"Eu entendi bem o que eles disseram sobre os lanhões e o cristianismo, mas naquela época era absolutamente obscuro para mim o significado das palavras "meu", "meu potro", palavras através das quais eu percebia que as pessoas estabeleciam uma espécie de vínculo entre mim e o chefe do estábulos. Não conseguia entender de jeito nenhum em que consitia este vínculo. Só o compreendi bem mais tarde, quando me separaram dos outros cavalos. Mas, naquele momento, não hove jeito de entender o que significava me chamarem de propriedadede um homem. As palavras "meu cavalo", referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas quanto as palavras 'minha terra', 'meu ar', 'minha água'." (pág74)
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LIVRO: O DIABO E OUTRAS HISTÓRIAS // AUTOR: LEÃO TOLSTÓI // EDITORA: COSACNAIFY // SÃO PAULO // 2000/2005.

sábado, 4 de julho de 2009

CRÔNICA DE UM ESCRIBA PÓS-TUDO

ARTIGO
04/07/2009 dC, tempo admirável! Vão acelerados os dias de inverno. Dias curtos, frios e fugidios. Questões! Intermináveis questões! O que faz uma realidade se tornar notável a ponto de ser digna de ser escrita e descrita em linguagem literária? Ou ainda: em que manancial simbólico e sígnico o autor vai buscar e extrair seus elementos de composição literária, fundindo - como sabemos ser corriqueiro - realidade, fantasia, mitos, crenças e medos? Depois de responder a estas difíceis e impositivas questões, outra maior e mais singular surge: transpor para o léxico, para a língua falada e escrita, o sentimento obtido, a informação desejada; vista, vivida, experimentada. Ou seja, capturar o momento e ser capaz de transpô-lo, refletindo no escrito o acontecido, vivido ou criado. Isso tudo, é claro, sem deixar de fora atributo e virtude importantíssimo que é saber escrever com graça. Com estilo. E isto, definitivamente, não é fácil. Eleger as palavras certas, compor sentenças satisfatórias e, especialmente, que sejam capazes de transmitir uma gama infinita de nuances que uma realidade inexoravelmente traz em seu bojo, que dificilmente serão plenamente descritas em texto - transportando o leitor ou trazendo a história até ele - é tarefa árdua. E, superados todos estes obstáculos abstratos - mas não menos importantes por causa disto - o escritor ou escriba, mesmo que aspirante, virá a se deparar com toda uma realidade e conjuntura específica do negócio livreiro, de publicações, voltados para o mercado consumidor, é claro, que vai com a moda, que vai com os costumes, que vai com a cultura, que vai os interesses, ou seja; que vai com todo mundo. Lê-se muito no Brasil, mas lê-se mal. Nas livrarias abundam porcarias de toda espécie, que não valem a tinta com a qual foram impressas. Nossa cultura ama mesmo a televisão. Como um elemento agravante, vem a falta de capacidade da população comum de entender o que leu, ou seja, um estudo mostrou que 80% dos pesquisados que leram algo específico, não conseguiu falar absolutamente nada sobre o que leram. Tiveram a capacidade de ler, de entender e operar dentro do sistema representativo de códigos verbais escritos, mas não foram capazes de sintetizar o que leram. Não foram sequer capazes de escrever uma linha sobre. Não absorveram. Sem dúvida, no Brasil e quem sabe no mundo, os livros são para a elite privilegiada, geralmente de buxo cheio, e a filosofar pelos demais menos favorecidos. E, para ser publicado, ou publicável nobre leitor, há que se ter conteúdo e se enquadrar. O queres tu dizer aos outros? Aos demais? Já pensaste nisso? Porque queres fazê-lo? Já paraste para analisar? O que move a ti a ser um escritor? Seria mera vaidade vulgar? E mais, o que dirás tu, será o que quer ouvir o demais? Pelas massas leitoras?

Enigmas! Enigmas indecifráveis!

Da Redação.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O BELÍSSIMO JEAN-CHRISTOPHE DE ROMAIN ROLLAND EM FRAGMENTOS ESCOLHIDOS

QUEM?
Romain Rolland (1866/1944). Talentoso novelista, biógrafo e músico francês. Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1915. Sua sensível obra concilia o idealismo patriótico com um internacionalismo humanista, além de demonstrar profunda compreensão sobre a alma humana. Escreveu peças de teatro, biografias como a Vida de Beethoven e Mahatma Gandhi, e o espetacular romance Jean-Christophe. Em 1923, fundou a revista Europe. Romain Rolland fez uma importante observação sobre o livro O Futuro de uma Ilusão de Freud. Esta observação foi a premissa usada por Freud para escrever o seguinte livro: O Mal-estar na Civilização. Quando o filósofo político italiano Antonio Gramsci escreveu, na prisão, que o "pessimismo da inteligência" não deveria abalar o "otimismo da vontade", estava citando Romain Rolland.
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COMENTÁRIO
Só lê Jean-Christophe, o romance do francês Romain Rolland, quem tem fôlego de alpinista e ama de fato as Letras. Ou então, é viciado em literatura e livros clássicos imortais. E, especialmente, quem dispõe de tempo, artigo de luxo nos dias corridos que vivemos hoje. Sim, porque a obra é bela, indubitavelmente, mas muito extensa. São, nada mais nada menos, que cinco volumes de quatrocentos e tantas páginas cada um. Em peso, deve dar uns cinco quilos ou mais de literatura fina e fluida, embotada de sentimentos humanistas e filosóficos interessantíssimos que, realmente, validam sua dilatada estatura e extensão, e com certeza encantará os leitores mais sensíveis que se aventurarem a lê-lo. Sem dúvida, vale a pena. No romance existem centenas de belas passagens, que dariam, com certeza, para encher todo um Blog com seu conteúdo de inegável relevância literata. Na impossibilidade de citar tudo que é notável na referida obra, seguem aqui algumas poucas citações, pequenas pérolas, das muitas que abundam na obra deste brilhante autor francês do tão recente século XX.
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CITAÇÕES
Sobre a riqueza:
"Todo rico é um ser anormal... Estás rindo? Zombas de mim? Ora essa! Sabe lá o rico o que é a vida? Fica ele acaso em comunhão com a rude realidade? Sente ele no rosto o sopro feroz da miséria, o cheiro do pão por ganhar, da terra a revolver? Pode lá compreender, pode ver sequer os seres e as coisas?..." (pág223/vol.IV)

Sobre a arte de escrever:
"Olivier não era bastante forte para lutar. Também ele mudara. Deixara o magistério, não tinha mais tarefa obrigatória. Escrevia somente, e o equilíbrio de sua vida se modificara. Até então, sofrera por não poder entregar-se inteiramente à arte. Agora, era todo da arte e sentia-se perdido no mundo das nuvens. A arte que não tem por contrapeso um ofício e por base uma forte vida prática, a arte que não sente na carne o aguilhão da tarefa cotidiana, a arte que não tem necessidade de ganhar o pão, perde o melhor de sua força e da sua realidade. É a flor do luxo. Não é mais (o que é nos maiores artistas) o fruto sagrado do esforço humano... Olivier conhecia o ócio: Para que? Nada mais o apressava: deixava a pena devanear, flanava, sem rumo." (pág253/vol.IV)

Sobre os gênios e o público:
"O público não suporta os gênios, senão em doses infinitesimais, raspado, limado, depilado, untado com os unguentos em moda..." (pág286/vol.IV)

Sobre o instinto e as tentações:
"Quando se cala a vontade, o instinto fala; na ausência da alma, o corpo segue o seu caminho." (pág293/vol.IV)

Sobre valores:
"- Sim, eu sei, isto lhe parece uma barbárie pré-histórica: matar! É preciso ouvir essa linda sociedade parisiense protestar contra os instintos brutais que levam o macho a matar a fêmea que o engana, e preconizar a indulgente razão! Que bons apóstolos! É uma beleza ver essa matilha de cães de má cruza indignar-se contra a volta à animalidade. Depois de terem ultrajado a vida, depois de a terem desvalorizado por completo, cercam-na de um culto religioso... O quê! Essa vida sem coração e sem honra, essa matéria, esse pulsar de sangue num pedaço de carne, eis o que lhes parece digno de respeito! Toda a consideração é pouca para essa carne de açougue; é um crime tocar nela. Matem a alma, se quiserem, mas o corpo é sagrado..." (pág333/vol.IV)

Sobre a amizade:
"É uma coisa tão rara dois seres que se compreendem, que se estimam, que sabem que estão seguros um do outro, não por uma simples crença de amor muitas vezes ilusória, mas pela experiência dos anos passados juntos, anos sombrios, medíocres, mesmo com - sobretudo com a recordação dos perigos que vencemos. À medida que se envelhece, tudo se torna melhor." (pág335/volIV)

Ainda sobre o gênio e seu meio:
"Agora que todos estavam bem convencidos de que tinham um gênio no meio deles, esforçavam-se, segundo o costume, por abafá-lo. Essa gente só tem uma ideia; ao ver uma flor: pô-la num vaso; ao ver um pássaro: engaiolá-lo; ao ver um homem livre: fazer dele um lacaio."

Sobre a juventude:
"Toda geração nova precisa de uma boa loucura. Mesmo nos mais egoístas dentre os moços há um excesso de vida, um capital de energia que não quer permanecer improdutivo; procuram gastá-lo numa ação, ou (mais prudentemente) numa teoria. Aviação ou Revolução. Esporte dos músculos das ideias. O moço precisa ter a ilusão de que participa de um grande movimento da humanidade, de que renova o mundo. Nessa idade, os sentidos vibram com todos os sopros do universo. Somos tão livres e tão leves!"
"E além disso é bom amar e odiar, e crer possível transformar a terra com sonhos e gritos! Os jovens são como cães de um alcatéia: fremem e ladram ao vento. Uma injustiça cometida no outro extremo do planeta os fazia delirar..." (pág13 e 14/volV)
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Brilhantemente, sobre a confecção e uso das ideias:
"Para que tantas explicações? Quando já se achou uma coisa, não há necessidade de dizer como foi achada, e sim apenas o que se achou. A análise dos pensamentos é um luxo burguês. O que é preciso às almas do povo é a síntese, ideias já feitas, bem ou malfeitas, e antes mal do que bem, mas que conduzam à ação, realidades prenhes de vida e carregadas de eletricidade." (pág54/volV)
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Sobre os instintos:
"Porque há uma alma secreta, potências cegas, demônios, que cada homem traz aprisionado em si. Todo o esforço humano, desde que o homem existe, consiste em opor a esse mar interior os diques da razão e das religiões. Mas, que se desencadeie uma tempestade (e as almas mais ricas são as mais sujeitas às tempestades), que os diques cedam, que os demônios tenham campo livre e possam ir de encontro a outras almas levantadas pelos mesmo demônios... Atiram-se umas sobre as outras e se enlaçam. Ódio? Amor? Furor de mútua destruição?... A paixão é alma de rapina." (pág150/volV)

Sobre as cidades pequenas:
"Por mais fechada que fosse a casa de Braun, por mais secreta que permanecesse a tragédia burguesa que nela se desenrolava, algo transpirava no exterior. Naquela cidade, ninguém podia gabar-se de esconder a própria vida. É estranho. Nas ruas ninguém nos olha; as portas das casas e as persianas estão fechadas. Há, entretanto, espelhos pendurados nos cantos das janelas; e ouve-se, ao passar, o ruído seco das persianas que se entreabrem e se fecham. Ninguém se preocupa conosco, parece que nos ignoram; mas nos apercebemos de que nenhuma das nossas palavras, nenhum dos dos nossos gestos foram perdidos; sabem o que fazemos, o que dissemos, o que vimos, o que comemos; sabem mesmo, julgar saber, o que pensamos. Uma vigilância oculta, universal, nos cerca a todos. Criados, fornecedores, parentes, amigos, indiferentes, transeuntes desconhecidos, todos colaboram por tácito consentimento nesta espionagem instintiva cujos elementos dispersos se centralizam, não se sabe como. Não se observam unicamente os astros, escrutam-se os corações." (pág155/volV)

Sobre a conduta do artista:
"Um artista deve captar o próprio gênio; não lhe permite dispersar-se ao léu. Canaliza tua força. Constrange-te a hábitos, a uma higiene de trabalho cotidiano, a horas fixas. São esses tão necessários ao artista quanto o hábito dos gestos e dos passos militares ao homem que deve bater-se. Venham momentos de crise - e eles sempre vêm - e essa armadura de ferro impede a alma de cair." (pág179/volV)

Sobre a robusta compleição física de Jean-Christophe, o personagem principal que dá nome à obra, e sua sensível alma combalida:
"Correram os dias. Christophe saiu dali esvaziado de vida. Continuava, entretanto, a manter-se de pé, saía, caminhava. Felizes daqueles a quem uma raça forte sustém nos eclipses da vida! As pernas do pai e do avô carregavam o corpo do filho prestes a esboroar-se; o impulso dos robustos antepassados conduzia a alma despedaçada, como é levado pelo cavalo o cavaleiro morto." (pág186/volV)

Belissimamente, sobre esta força maior que tudo gera, rege e transcende:
"Estava sereno. Agora compreendia. Compreendia a vaidade de seu orgulho, a vaidade do orgulho humano, sob o punho temível da Força que move os mundos. Ninguém é senhor de si, com segurança. É preciso vigilar. Porque, se adormecemos, a Força precipita-se sobre nós e nos arrasta... para que abismos? Ou a torrente se retira e nos deixa em seu leito seco. Não basta mesmo querer lutar. É preciso humilhar-se ante o Deus desconhecido, que flat ubi vult, que sopra quando quer, onde quer, o amor, a morte, ou a vida. A vontade do homem nada pode sem a sua. Um segundo lhe basta para aniquilar anos de labor e de esforços. E, se lhe apraz, pode fazer surgir da lama o eterno. Ninguém, tanto como o artista criador, se sente a sua mercê: porque se é verdadeiramente grande, nada mais diz além daquilo que o espírito lhe dita. E Christophe compreendeu a sabedoria do velho Haydn, pondo-se de joelhos, cada manhã, antes de tomar a pena... Vigila et Ora. Rogai a Deus, a fim de que esteja convosco. Ficai em comunhão amorosa e pia com o espírito da vida." (pág198/volV)
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LIVRO: Jean-Christophe // AUTOR: Romain Rolland // VOLUME: IV // EDITORA: Globo // São Paulo // 1941